domingo, 17 de janeiro de 2021

A cadeira do dentista

 Carlos Eduardo Novaes

Fazia dois anos que não me sentava numa cadeira de dentista. Não que meus dentes estivessem por todo esse tempo sem reclamar um tratamento. Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a suar frio folheando velhas revistas na antessala e me escafedia antes de ser atendido. Na única ocasião em que botei o pé no gabinete do odontólogo − tem uns seis meses −, quando ele me informou o preço do serviço, a dor transferiu-se do dente para o bolso. 

− Não quero uma dentadura em ouro com incrustações em rubis e esmeraldas − esclareci −, só preciso tratar o canal. 

− É esse o preço de um tratamento de canal! 

− Tem certeza? O senhor não estará confundindo o meu canal com o do Panamá? 

Adiei o tratamento. Tenho pavor de dentista. O mundo avançou nos últimos 30 anos, mas a Odontologia permanece uma atividade medieval. Para mim não faz diferença um “pau-de-arara” ou uma cadeira de dentista: é tudo instrumento de tortura. 

Desta vez, porém, não tive como escapar. Os dentes do lado esquerdo já tinham se transformado em meros figurantes dentro da boca. Ao estourar o pré-molar do lado direito, fiquei restrito à linha de frente para mastigar maminhas e picanhas. Experiência que poderia ter dado certo, caso tivesse algum jeito para esquilo. 

A enfermeira convocou-me na sala de espera. Acompanhei-a, após o sinal-da-cruz, e entramos os dois no gabinete do dentista, que, como personagem principal, só aparece depois do circo armado. − Sente-se − disse ela, apontando para a cadeira. 

− Sente-se a senhora − respondi com educada reverência −, ainda sou do tempo em que os cavalheiros ofereciam seus lugares às damas. 

Minhas pernas tremiam. Ela tornou a apontar para a cadeira. 

− O senhor é o paciente! 

− Eu? A senhora não quer aproveitar? Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de tártaro? Fique à vontade. Sou muito paciente. Posso esperar aqui no banquinho. 

O dentista surgiu com aquele ar triunfal de quem jamais teve cárie. Ah! Como adoraria vê-lo sentado na própria cadeira extraindo um siso incluso! Mal me acomodei e ele já estava curvado sobre a cadeira, empunhando dois miseráveis ferrinhos, louco para entrar em ação. Nem uma palavra de estímulo ou reconforto. Foi logo ordenando: 

− Abra a boca. 

Tentei, mas a boca não obedeceu aos meus comandos. 

− Não vai doer nada! 

− Todos dizem a mesma coisa − reagi. Não acredito mais em vocês! 

− Abra a boca! − insistiu ele. 

Abri a boca. Numa cadeira de dentista sinto-me tão frágil quanto um recruta diante do sargento do batalhão. 

Ele enfiou um monte de coisas na minha boca e tocou o dente com um gancho. 

− Tá doendo? 

− Urgh argh hogli hugli. 

Os dentistas são tipos curiosos. Enchem a boca da gente de algodão, plástico, secadores, ferros e depois desandam a fazer perguntas. Não sou daqueles que conseguem responder apenas movendo a cabeça. Para mim, a dor tem nuances, gradações que vão além dos limites de um sim-não. 

− A anestesia vai impedir a dor − disse ele, armado com uma seringa. 

− E eu vou impedir a anestesia − respondi duro segurando firme no seu pulso. 

Ele fez pressão para alcançar minha pobre gengiva. Permaneci segurando seu pulso. Ele apoiou o joelho no meu baixo ventre. Continuei resistindo, em posição defensiva. Ele subiu em cima de mim. Miserável! Gemi quase sem forças. Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa. Lembrei-me de Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça. A agulha penetrou a poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto. Ele voltou com a seringa. 

− Não pense que o senhor vai me anestesiar como anestesia qualquer um − disse, dando-lhe um tapa na mão. 

A seringa voou longe e escorregou pelo assoalho. Corremos os dois pra alcançá-la, caímos no chão, embolados, esticando os braços para ver quem pegava a seringa. Tapei-lhe o rosto com meu babador e cheguei antes. A situação se invertera: eu estava por cima. 

− Agora sou eu quem dá as ordens − vociferei, rangendo os dentes. − Abra a boca! 

− Mas... não há nada de errado com meus dentes. 

− A mim você não engana. Todo mundo tem problemas dentários. Por que só você iria ficar de fora? Vamos, abra essa boca! 

− Não, não, não. Por favor − implorou. Morro de medo de anestesia. 

Era o que eu suspeitava. É fácil ser corajoso com a boca dos outros. Quero ver continuar dentista é na hora de abrir a própria boca. Levantei-me, joguei a seringa para o lado e disse-lhe, cheio de desprezo: 

− Você não passa de um paciente!


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