domingo, 3 de janeiro de 2021

Três histórias de médicos que foram além

 O Natal não faz ninguém mais doce, mas quem for derrete.

Primeira história 

Geraldo Ari é um médico carioca que se notabilizou por uma rotina de 30 anos: na véspera de Natal, fantasiado de Papai Noel, subia os morros carentes do Rio com uma sacola de brinquedos. Confidenciara aos amigos que nada o encantava mais do que a alegria de criança pobres, recebendo presentes. 

Naquela tarde, já velho e cada vez mais parecido com Papai Noel, com sobrepeso e fôlego curto, subiu o morro do Complexo do Alemão com dificuldade e fez várias paradas para respirar. A roupa de seda, o gorro e a barba postiça, ao sol escaldante, não ajudavam. Mas, no topo, a canseira se dissipou pela euforia da molecada, surpreendida pela descoberta de que Papai Noel existia sim, contrariando o realismo decepcionante dos pais. 

Distribuindo presentes com festejos intermitentes, ele começou a retornar. O trajeto da volta em declive facilitava a marcha, mas o nosso herói anônimo já suava muito, quando foi interrompido pela voz estridente de um menino: “Papai Noel, Papai Noel!”. Quando o chamado se repetiu, ele parou, e sem disfarçar a irritação, perguntou: 

− O que você quer, menino? Eu não tenho mais presentes! 

E então teve de ouvir: 

− Eu só queria mandar lembranças pra Deus! 

Ele completou a descida misturando suor e lágrimas. 

Segunda história 

Durante uns 50 anos, Milton Meier colocou a doçura do seu coração a serviço da correção de coraçõezinhos defeituosos, no Rio de Janeiro. Por este caminho, chegou às suas mãos talentosas o André, um garoto com uma cardiopatia congênita que não lhe permitia crescer. A cirurgia transcorreu sem sobressaltos, e os pais ouviram, aliviados, que ele estaria em casa no Natal, a tempo de comemorar seu aniversário. 

Na manhã seguinte, quando os efeitos da anestesia já deveriam ter passado, o André não acordou. A despeito de todos os exames normais, ele continuava dormindo, respirava preguiçosamente e necessitando de aparelhos. Eram outros tempos aqueles, e, após operações cardíacas, as lesões neurológicas não eram raras. Três ou quatro dias se passaram, chegou a noite de Natal e o André continuava na UTI, necessitando de cuidados. Desolado, o Milton decidiu ficar com ele. 

− Estávamos sós, o dorminhoco, uma enfermeira e eu. Pouco depois da meia-noite, me aproximei da cama e comentei com a enfermeira: sabes quantos anos ele vai fazer? 

O André mexeu-se, abriu os olhos, levantou o braço e mostrou: quatro dedinhos. Quarenta anos se passaram e a emoção daquele Natal me acompanhou em todos os que vieram depois! 

Terceira história 

Relendo o Livro dos Abraços, do Eduardo Galeano, encontrei está pérola: 

“Fernando Silva dirige um hospital infantil em Manágua. Na véspera de Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Já estavam soltando foguetes e começaram os fogos artificiais a iluminar o céu, quando Fernando decidiu ir embora. Em sua casa, o esperavam para festejar. Fez então uma última visita às enfermarias, vendo se tudo estava em ordem, quando sentiu que alguns passos o seguiam. Uns passos de algodão: voltou-se e descobriu que uma das crianças andava atrás dele. Na penumbra, o reconheceu. Era um menino que estava só. Fernando reconheceu seu rosto já marcado pela morte e aqueles olhos que pediam desculpa ou, talvez, pedissem permissão... Fernando se aproximou e o menino o tocou com a mão: 

− Diga a... − sussurrou o menino. − Diga a alguém que estou aqui. 

***** 

No desespero, não há consolo maior do que saber que, em algum lugar, há alguém. Por nós. 

(Da crônica “O que o natal faz com a gente”,

J.J. Camargo*, em Zero Hora, janeiro de 2021) 

*J.J. Camargo é cirurgião torácico da Santa Casa de Porto Alegre e membro titular da Academia Nacional de Medicina. 


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