segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Muitas mãos

 Paulo Mendes*

Seu Neto, companheiro de meu pai nas tropeadas, tinha as mãos cheias de calos, sulcos, verdadeiras cicatrizes do tempo. Meu pai, seu José Mendes, tinha mãos finas e compridas, com as veias saltadas, também com uns cortes que se atravessavam ao comprido e de lado, na parte posterior. Na parte interna, eram marcas de tirões de laço, cortes de arames farpados. Minha mãe, dona Mirica, a bolicheira, tinha mãos grossas, dedos curtos, que também traziam marcas de queimaduras, e até dois sinais de uma picada de cruzeira. Esse acidente quase lhe tirou a vida quando ainda era uma guria lá na Serra das Encantadas, onde passou sua infância. Desde guri tenho esta mania de observar as mãos das pessoas, talvez um costume do tempo de bolicheiro. Era uma forma de saber “com quem se estava lidando”. Dona Mirica dizia que as mãos de uma pessoa revelavam quem ele era, o que fazia e o que pretendia no bolicho. 

Entendo que neste ano de 2021 vamos precisar de muitas mãos. Mãos calejadas, mãos suaves e macias, mãos de gente do campo e da cidade. Mãos que batem teclados como eu, mãos que manejam bisturis nos hospitais, mãos que seguram duros cabos de machado e enxadas, mãos que manobram máquinas no campo e nas fábricas citadinas. Vamos precisar de todo mundo. O ano será de retomada, depois de um 2020 de muito sofrimento em função da pandemia que nos machucou o corpo e a alma. As perspectivas são sombrias, mas será através de nossas mãos que vamos manobrar e talvez dobrar adversidades, que serão muitas. 

(...) 

Vamos arremangar as camisas e dar trabalho para essas mãos que nos acompanham desde que nascemos. É chegada a hora, meus amigos, de enfiar a mão na massa, cortar, montar, refazer de novo. Juntos seremos muitos e, mesmo separados pela distância e pelas convicções e ideias, vamos trabalhar. É chegada a hora de nossas mãos mostrarem a que vieram ao mundo.

(...) 

Ah, essa mãos gaúchas que tanto pelearam, que seguraram lanças de taquara, adagas, longas espadas, laços e boleadeiras, todas as armas possíveis. Mãos que se destroçaram defendendo fronteiras, cuidando da nossa gente. 

Hoje, em tempo de paz, precisamos de muitas mãos, mãos descendentes daquelas antigas mãos, para tocar e refazer nossas vidas, nosso lugar. Somos gaúchos e já nos refizemos tantas vezes, agora não será diferente. Nossas mãos serão mais úteis do que nunca, porque foi mesmo uma guerra. E lá as vejo, me abanando, milhares de mãos, avisando que estão unidas, juntas, para refazer tudo o que foi destruído. Porque somos assim, peleadores, sempre, mesmo que tenhamos apenas a força de nossas mãos. 

***** 

*Em “Campereada”, Correio do Povo, janeiro de 2021

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