sábado, 12 de março de 2022

Brasil

 Ronald de Carvalho

Nesta hora de sol puro

palmas paradas

pedras polidas

claridades

faíscas

cintilações

Eu ouço o canto enorme do Brasil.

Eu ouço o tropel dos cavalos de Iguaçu

correndo na ponta das rochas nuas, empinando-se no ar molhado,

batendo com as patas de água na manhã de bolhas e pingos verdes;

Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara e grave melodia, Amazonas, a melodia da tua onda lenta de óleo espesso, que se avoluma e se avoluma, lambe o barro das barrancas, morde raízes, puxa ilhas e empurra o oceano mole como um touro picado de farpas, varas, galhos e folhagens; 

Eu ouço a terra que estala no ventre quente do Nordeste, a terra que ferve na planta do pé de bronze do cangaceiro, a terra que se esboroa e rola em surdas bolas pelas estradas de Juazeiro e quebra-se em crostas secas, esturricadas no Crato chato; 

Eu ouço o chiar das caatingas − trilos, pios, pipios, trinos, assobios, zumbidos, bicos que picam, bordões que ressoam retesos, tímpanos que vibram límpidos, papos que estufam, asas que zinem zinem rezinem, cris-cris, cicios, cismas, cismas longas, langues − caatingas debaixo do céu.

Eu ouço os arroios que riem, pulando na garupa dos dourados gulosos, mexendo com os bagres no limo da luras e das locas; 

Eu ouço as moendas espremendo canas, o glu-glu do mel escorrendo nas tachas, o tinir da tigelinhas nas seringueiras;

e machados que disparam caminhos,

e serras que toram troncos,

e matilhas de “Corta-Vento”, “Rompe-Ferro”, “Faíscas”

e “Tubarões” acuando suçuaranas e maçarocas,

e mangues borbulhando na luz,

e caititus tatalando as queixas para os jacarés que dormem no tejuco morro dos igapós... 

Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo, gritando, vociferando.

Redes que se balançam,

sereias que apitam,

usinas que rangem, martelam, arfam, estridulam, ululam e roncam,

tubos que explodem,

guindastes que giram,

rodas que batem,

trilhos que trepidam,

rumor de coxilhas e planaltos, campainhas, relinchos, aboiados e mugidos,

repiques de sinos, estouros de foguetes, Ouro Preto, Bahia, Congonhas, Sabará

vaias de Bolsas empinando números como papagaios,

tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus,

vozes de todas as raças que a maresia dos portos joga no sertão.

Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil.

Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar...

a conversa dos fazendeiros nos cafezais,

a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,

a conversa dos operários nos fornos de aço,     

a conversa dos garimpeiros peneirando as bateias,

a conversa dos coronéis nas varandas das roças... 

Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora de sol puro,

palmas paradas

pedras polidas

claridades

brilhos

faíscas

cintilações

é o canto dos teus berços, Brasil, de todos esses teus berços, onde dorme, com a boca escorrendo leite, moreno, confiante, o homem de amanhã! 

*******

Publicado no livro Toda a América (1926) 

Do livro “Vozes da Metrópole Uma antologia do Rio dos anos 20”, de Ruy Castro. 

Ronald de Carvalho

(1893-1935)

Diplomata e literato brasileiro nascido no Rio de Janeiro, RJ, um dos mais significativos expoentes do modernismo brasileiro. Após formar-se em direito (1912), ingressou na carreira diplomática (1914). Conciliando a literatura com a diplomacia, seus primeiros poemas denotavam forte cunho simbolista. A estréia em livro ocorreu com Luz gloriosa (1913), que revelava influência de Verlaine e Baudelaire. 

Participou na Semana de Arte Moderna (1922), iniciando sua criação no âmbito do modernismo. Morreu em um acidente de automóvel no Rio de Janeiro, quando ele era secretário da presidência da república. Em sua obra também foram destaques Poemas e sonetos (1919), Pequena história da literatura brasileira (1919), Epigramas irônicos e sentimentais (1922), Toda a América (1926), considerado sua obra mais representativa da fase poética, Espelho de Ariel (1923) e Estudos brasileiros (três séries: 1924-1931).

Nenhum comentário:

Postar um comentário