domingo, 27 de março de 2022

Nosso porto

 Claudia Tajes

Foto de João Marcelo Osório 

A primeira lembrança: não lembro. Talvez seja a Redenção, mas também pode ser a pracinha perto de casa ou mesmo o pátio da casa da avó. Uma coisa era certa: tinha um cheiro que até hoje algumas ruas de Porto Alegre têm, cheiro que não se sente em nenhum outro lugar. Tempero? Chá? As flores ficando amareladas no vaso da sala? 

Por um bom tempo, todas as lembranças são de Porto Alegre. Sorvete com a família na sorveteria Nevada, da Cristóvão Colombo. No verão de calor quase sólido, o meio da rua tomado por cascudos – fora os que vinham voando e entravam no cabelo, para pavor das crianças. E o sorvete no Mercado Público. A taça de creme, chocolate e morango sempre aos sábados, com o pai. 

Os jogos no Olímpico. Depois do almoço de domingo, minhas irmãs – uma delas virou casaca e hoje é colorada –, eu e o pai nas cadeiras. Enquanto ele tentava ver Espinosa e Ivo Wortmann em campo, as filhas pedindo para comer absolutamente tudo o que estivesse à venda. Overdose de cachorro-quente com churros com pipoca com picolé. Sobre a bola rolando, nada a declarar. Daí nasceu meu irmão e nós três fomos para o banco. 

As lojas do centro com a mãe. Não que ela gostasse de me levar, já que a objetividade não existe quando se vai às compras com uma criança pequena a tiracolo, coisa que a gente só descobre mais tarde, com os próprios filhos. As lojas preferidas: todas. De tecidos, roupas, quinquilharias, ferragens, farmácias. As bijuterias da Sloper, praticamente uma Disneylândia na Rua da Praia. A Livraria do Globo, de onde ninguém saía sem um livrinho de colorir com água, que fosse. 

Ipanema, para onde nos mudamos no início da minha adolescência, o que me obrigou a deixar uma vida de 12 anos para trás. Parece pouco, mas é uma história. De repente, o nada. O colégio desconhecido, o medo de não fazer novos amigos. Mudar de bairro é mudar de planeta, quando se tem 12 anos. 

O tempo sendo contado pelo que já podia fazer sem a tutela dos pais. Pegar ônibus, linhas Serraria e Juca Batista, a parada na frente da nossa casa. Sair de noite para as festinhas na AABB e no Clube do Professor Gaúcho. Daí para a primeira cerveja e o primeiro beijo, não necessariamente nessa ordem, a vida foi um pulo. 

Engraçado como a Zona Sul era muito mais longe, naquele tempo. De lá até a Fabico, nas vizinhanças do Planetário, levava-se a eternidade. Entre uma e outra, havia a Osvaldo Aranha, os cinemas e os bares. Era preciso ser forte para ir às aulas. Nem sempre eu fui. 

Então, um dia, a pessoa acorda adulta e tudo vira uma lembrança só. Trabalho, morar sozinha, amores que depois a gente renega, outros que renegam a gente. Encontrar um caminho, trocar de caminho, não se achar nunca. Quando se conhece outros lugares, Porto Alegre perde um tanto da mágica que tinha lá no início. Não se envelhece sem realidade, o que vale para pessoas e para cidades. De qualquer jeito, voltar para Porto Alegre é sempre um respiro. Algo como sentir, outra vez, o cheiro de tempero, de chá, das flores ficando amareladas no vaso da sala. O cheiro de casa. 

Feliz aniversário, meu porto. 

(Do caderno Donna, de Zero Hora, 26 de março de 2022*) 

*Data em que a nossa querida Porto Alegre, a capital dos gaúchos, comemora os seus 250 anos.

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