segunda-feira, 14 de março de 2022

Meus pais velhos nas sacadas

 Fabrício Carpinejar

− Tire o relógio! 

− Tire as chaves! 

− Tire o cinto! 

− Tire os sapatos! 

− Ainda está sinalizando. Tem algum objeto de metal consigo? 

− … 

− Só o chumbo no coração. 

O tempo que experimentamos é um detector de metal em que devemos passar várias vezes. 

É uma revista rigorosa de nossos sentimentos. Cada vez teremos que ficar mais despidos, mais despojados, reduzidos ao essencial. 

Não há como carregar nenhum excesso de emoção. Atravessaremos para o outro lado descalços e sem posses. 

O peso do coração continua depois de dois anos de pandemia. 

Houve flexibilização, mas não conseguimos recuperar a rotina com os nossos pais velhos. 

Eles vivem uma liberdade condicional, com direito a um breve passeio, tendo que retornar para o seu endereço após as 18h. Seguem aprisionados em suas janelas e sacadas, até a Ômicron serenar, até o contágio diminuir. 

Mesmo que estejamos triplamente vacinados, não entro na casa deles. 

Conversamos no jardim. 

Por prevenção, sigo observando os dois de longe. Não abraço, não beijo, não sinto segurança plena para o meu afeto italiano e exagerado. 

No máximo, abaixo a cabeça a distância para receber o voo da bênção. A bênção virou um passarinho partindo do aceno. 

Não quero ser responsável por nenhuma baixa familiar. Pode me dizer que estou sendo exagerado, só que tenho consciência do quanto a vida deles vale para mim. 

O detector transcorre pelo lado de dentro, pelos costumes. A saudade é de ferro. Apita alto quando me aproximo deles. 

Você não tem ideia de como desejo ardentemente quebrar as regras, fingir onipotência, esquecer os protocolos. 

Porém, a responsabilidade é maior do que a liberdade. Sou pai dos meus pais e não deixo o individualismo me vencer. E é um individualismo estranho, nem parece egoísmo; é feito somente de ternura, de falta, de apego. 

Eu gostaria de levá-los a uma livraria, fingir que estou indo ao banheiro e pagar a conta dos livros escolhidos; eu gostaria de levá-los para um banho de mar e pular as ondas como se fôssemos um bando de crianças; eu gostaria de levá-los ao cinema, ajudá-los a acomodar a bebida na cadeira e o pacote de pipocas no colo; eu gostaria de oferecer colo e alisar os cabelos grisalhos, e enxergar, por alguns minutos, o filme do meu amor por eles em suas testas brilhantes. 

(Do jornal Zero Hora, março de 2022)

Fabrício Carpi Nejar (Caxias do Sul, 23 de outubro de 1972), ou Fabrício Carpinejar, como passou a assinar a partir de 1998, é um poeta, cronista e jornalista brasileiro.

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