Tapera- Ilustração de
Percy Lau
Certo dia, creio que num sábado de
final de agosto, interpelei o seu Turíbio sobre os motivos dele ser daquele
jeito: contador de causos, dizedor de anedotas, fazedor de chistes, enfim, de
viver alegre e satisfeito. Estava se findando um longo e gelado inverno quando
fiz a pergunta para o amigo de todas as horas, o ancião rabugento de casco
grosso, aquele que todos subestimavam, de quem riam, mas que o achavam chato e
impertinente. Ele até era mesmo tudo isso, porém as pessoas também têm as suas
qualidades, é só olhar com mais atenção. Seu Turíbio era um velhinho “xarope”,
mas eu o considerava muito inteligente, sábio até, com seus mais de 80 anos.
Então, depois de se acomodar no banco do bolicho e pedir um aperitivo de
cachaça com bitter, o xiru velho repetiu o característico gesto de repuxar o
canto esquerdo da boca, soltou um muxoxo e então respondeu:
− Conto causos pra não me tornar
tapera.*
− Como assim, seu Turíbio? −
retruquei.
− Tu é ainda um guri, não entende
essas coisas, mas chega uma hora na vida da gente que tudo parece que se torna
um vazio. Vão-se os amigos antigos, morrem os entes queridos, ficamos sós. Aí,
então, é hora da gente lutar para não ficar como essas taperas abandonadas, de
paredes caídas, mato por todo lado, sem pátio, só vestígios...
Confesso que à época não entendia
muito bem aquilo que seu Turíbio falava. Imaginava, mas não sabia dimensionar
na realidade da semântica. Intuía. Só hoje, passados tantos anos, eu compreendo
de fato suas palavras, as suas razões e os seus motivos. Porque ele ficava
horas e horas charlando com um piá sem experiência de vida e parecia se
divertir com minhas perguntas. Trouxe dele muita coisa, era um homem
conservador, engraçado, cheio de filosofia adquirida nos galpões e corredores,
autêntico, genuíno, um gaúcho. Parece que havia perdido muitas oportunidades na
vida por ser sincero, dizer a verdade nos momentos errados. Então alertava:
− Diga sempre a verdade, mas na hora
certa. Às vezes, se não puder dizer a verdade, então a omita, fique calado.
Ah, seu Turíbio, quantas vezes
deveria ter ficado calado e não segui sua orientação. Mas de uma coisa me
orgulho, de ter adquirido, por meio do antigo carreteiro, a prática e o gosto
pela contação de causos, de chistes, viver brincando para não me tornar tapera.
Muitas vezes, estamos rodeados de gente e nos sentimos sozinhos, e por outras,
mesmo sozinhos, nos sentimos cheios de almas amigas por dentro.
Não, tapera não, pois é triste morrer
solito. Rodeado de ervas daninhas, tapado de inço. Anos depois, quando já tinha
me “tapado de quero-quero” e me bandeado da minha querida Vila Rica, alguém
veio me avisar que o seu Turíbio havia morrido numas carreiradas, comemorando a
vitória de um potro desconhecido que recém tinha chegado dos pagos da
Igrejinha. O velho apostara todas as suas fichas naquele cavalo que vencera “de
cola erguida”. Não, seu Turíbio não morreu tapera. Foi para a Estância do Silêncio
como quis, em meio a uma festança, rodeado de gente, sem penas, brincando e se
divertido num lindo domingo de carreiras.
(Paulo Mendes, em Campereadas,
Correio do Povo, outubro de 2018)
*Tapera – Casa de campo
abandonada, deserta, sem moradores.
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