A liberdade (1)
(Gravura de Voldinei Burkert Lucas)
Vinha fugindo havia dois dias,
escapulindo, negaceando, aqui e ali, varando vaus, praticamente sem dormir, o
tordilho cansado, magro, só os osso, mas resistindo. Resistiram ambos, não
podiam fraquejar, era isso ou a morte. E os inimigos, eram quantos? Ah, nem
sabia, mas vários. Desde a refrega que tiveram na Serrinha sobraram ele e mais
alguns parceiros, se dividiram, mas os inimigos vinham no encalço. Eram
implacáveis. Ah, que guerra estranha de irmãos contra irmãos. Onde iriam para?
Salustiano havia dito alguns anos antes, se a revolução* viesse ia ser cruel.
“Guerra civil é assim, violenta, famílias se matam, irmãos se matam, tudo é
vingança, jorro de sangue, cruz, credo, tomara que não vingue”. Mas vingou. Lá
longe vislumbrou um caponete e cutucou o tordilho, coitado, que ia de cabeça
baixa, babando. Na sanga, o cavalo caiu, tremendo. Puxou a adaga e degolou o
amigo num upa, não queria que os inimigos o fizessem. O tordilho abriu os olhos
grandes ainda mais e fitou a esmo o infinito. Ele pegou um naco de charque que
trazia de baixo dos arreios e seguiu a pé para o capão. As botas pesavam, as
roupas sujas fediam, tudo cheirava mal, como aquela guerra. Quando chegou nas
moitas, sentiu medo, um receio de que talvez estivesse no fim, a enxergar os
últimos clarões da vida.
A espada estava irremediavelmente
perdida, restava-lhe a adaga e agora talvez ainda pudesse improvisar uma lança
no capão. Arma de fogo? Nada. Eles tinham, era quase uma certeza. Quanto tempo
tirara de vantagem? Quinze minutos, um a hora, duas? Agora não escutava mais os
malditos gritos, nem o tropel dos cavalos. Por que essa raiva toda acumulada?
Por que não desistiam? Caramba, o que um homem vale numa hora dessas, por que
essa sede de vingança? Sim, as degolas eram de parte a parte. Como tudo havia
começado nem ele mais sabia. Ninguém. Só queria chegar em casa, rever a mulher,
os filhos, retomar a vida lavrando a terra, plantando e colhendo, como sempre
fizera. Tentou correr para achar um ponto de melhor observação, mas foi
perdendo as forças, devagar. Escureceu. Começou a sonhar...
O trigo maduro. Ele, Mariana, os
tios, a família da esposa, os amigos. Ao longe, as filhas brincando com os
cachorros. Uma manhã radiante. Depois de trabalharem muito, descansavam debaixo
dos eucaliptos e ficavam observando a farta colheita. Prenúncio de farinha,
cheiro de pão no forno, sabor de casa. Ah, como eram bonitos aqueles mutirões
de vizinhos para colher o grão que brotava da terra. Depois viriam as lavouras
das outras famílias. E o rancho? Caiado, as tambeiras, o tordilho solto no
piquete, o pomar das laranjeiras, o chiqueiro, o poço de água fresca, isso tudo
parecia tão lindo lá no Rincão do Meio, onde levantara morada e agora descobria
que tinha sido feliz.
Então, o frio da lâmina. Algo lhe
rasgou a goela, o extermínio, o ódio, a barbárie. Seguiu dormindo. Sonho,
imaginação ou realidade? Não compreendia. Experimentou uma leveza se espalhando
pelo corpo magro. Já não era dor, não era fome, não era sede. Por ausência, um
vazio. Como um pássaro, bateu as asas e foi subindo por entre as nuvens
tristes. Do alto vislumbrou seu corpo espichado na grama perdida do Pampa. Era,
enfim, a liberdade...
Paulo Mendes, em
Campereada, Correio do Povo, outubro de 2018.
*O autor se refere à Revolução Federalista de fevereiro de 1893 a agosto de 1895.
A liberdade (2)
(Pinheiro Machado e
tropa de pica-paus)
Eram quatro homens. Guerreiros,
gaúchos, “pica-paus”, mas agora, olhando aquele corpo ensanguentado nem sabiam
mais o que eram. Foi Latorra, um cuera lá do rincão dos Mulatos, que cortou a
garganta do fugitivo. O maragato fora valente, isso foi, mas o haviam
capturado. Eles também arrebentaram os cavalos, foi exaustivo, depois de ultrapassarem
banhados, coxilhas, cortarem cercas, mas enfim, assunto acabado. O mais novo
deles, Locrécio, ainda um rapazote, barba rala, quase albino, de melenas
compridas, foi quem sugeriu que o enterrassem. “Não”, gritara Cabo Antunes, que
abandonara o serviço militar por desacato e ameaça de prisão. Era uma espécie
de chefes deles. Enquanto arrumava os arreios, Chico Osório concordou. Este,
por sua vez, funcionava no grupo como um ajudante de ordens do chefe e com tudo
concordava. “Essa gente morre e fica ao relento, pros corvo cumê...”,
sentenciou.
Depois retornaram, ao trote batido,
do meio para o fim da tarde. No início, chegaram a trocar algumas impressões,
mas depois se calaram e, por fim, emudeceram por completo. Era apenas o barulho
dos cascos dos cavalos nas várzeas, depois um longo corredor perto do Caverá, iam
transpondo rios, várzeas, fazendas abandonadas. Estavam famintos, nem lembravam
mais o que era uma refeição decente. Dias atrás haviam jantado uma galinha com
arroz, com muita “pementa”, num bolicho improvisado numa carreta abandonada.
Pagaram com algumas facas, um par de estribo e um freio. O Rio Grande estava
devastado, diziam, e parecia ser verdade. Desde a Guerra dos Farrapos, os
campos não se enchiam mais de gado. Cavalos, poucos, as guerras terminavam com
tudo. E eles ali, no meio de outra. E os chefes, qual chefes, não se importavam
com eles... Mas matavam porque senão morriam. Nem sabiam por que entraram,
recrutados à moda da época, atenderam chamados e aprenderam a guerrear no calor
dos entreveros. Haviam perdido tantos amigos, familiares, uns degolados, outros
vilipendiados, humilhados antes de morrer. Então era preciso a vingança.
Como essa infâmia havia começado
ninguém sabia, assim no precisar do fato. Era um diz-que-me-diz-que. Onde
morava a verdade inteira? Não, nem adiantava campear. Locrécio agora não falava
nada, mas a imagem do fugitivo degolado não lhe saía da cabeça, nem sabia se um
dia aquilo ia sair. Que loucura, os olhos esbugalhados, o corte aberto de orelha
a orelha e o sangue a jorrar. Devia ter família, filhos, sim, era possível. Ele
não tinha filhos, mas havia dona Mirta, lá no Espinilho Grande, que lhe
esperava. Era uma boa mãe. Havia dito: “Não vá, meu filho, para que morrer por
algo que nem sabemos o que é?” Mas ele foi. Agora engolia horizontes, varava
noites, cruzava dias, arriscando a vida, fugindo e peleando. Sim, tinha certeza
que, mesmo advindo a paz, nunca mais seria livre, seria sempre prisioneiro.
“Livre” mesmo, para sempre, só o fugitivo, aquele que prenderam e mataram.
*****
*A Revolução Federalista de 1893 a 1895 foi uma das
maiores carnificinas que Rio Grande do Sul presenciou. Ao fim da guerra civil,
havia 10 mil mortos. A prática da degola manchou nossa história. É preciso
olhar para trás para que os grandes erros não se repitam.
(Paulo Mendes, em
Campereada, Correio do Povo, outubro de 2018)
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