domingo, 21 de outubro de 2018

Duas trágicas crônicas gaúchas

A liberdade (1)


(Gravura de Voldinei Burkert Lucas)

Vinha fugindo havia dois dias, escapulindo, negaceando, aqui e ali, varando vaus, praticamente sem dormir, o tordilho cansado, magro, só os osso, mas resistindo. Resistiram ambos, não podiam fraquejar, era isso ou a morte. E os inimigos, eram quantos? Ah, nem sabia, mas vários. Desde a refrega que tiveram na Serrinha sobraram ele e mais alguns parceiros, se dividiram, mas os inimigos vinham no encalço. Eram implacáveis. Ah, que guerra estranha de irmãos contra irmãos. Onde iriam para? Salustiano havia dito alguns anos antes, se a revolução* viesse ia ser cruel. “Guerra civil é assim, violenta, famílias se matam, irmãos se matam, tudo é vingança, jorro de sangue, cruz, credo, tomara que não vingue”. Mas vingou. Lá longe vislumbrou um caponete e cutucou o tordilho, coitado, que ia de cabeça baixa, babando. Na sanga, o cavalo caiu, tremendo. Puxou a adaga e degolou o amigo num upa, não queria que os inimigos o fizessem. O tordilho abriu os olhos grandes ainda mais e fitou a esmo o infinito. Ele pegou um naco de charque que trazia de baixo dos arreios e seguiu a pé para o capão. As botas pesavam, as roupas sujas fediam, tudo cheirava mal, como aquela guerra. Quando chegou nas moitas, sentiu medo, um receio de que talvez estivesse no fim, a enxergar os últimos clarões da vida.

A espada estava irremediavelmente perdida, restava-lhe a adaga e agora talvez ainda pudesse improvisar uma lança no capão. Arma de fogo? Nada. Eles tinham, era quase uma certeza. Quanto tempo tirara de vantagem? Quinze minutos, um a hora, duas? Agora não escutava mais os malditos gritos, nem o tropel dos cavalos. Por que essa raiva toda acumulada? Por que não desistiam? Caramba, o que um homem vale numa hora dessas, por que essa sede de vingança? Sim, as degolas eram de parte a parte. Como tudo havia começado nem ele mais sabia. Ninguém. Só queria chegar em casa, rever a mulher, os filhos, retomar a vida lavrando a terra, plantando e colhendo, como sempre fizera. Tentou correr para achar um ponto de melhor observação, mas foi perdendo as forças, devagar. Escureceu. Começou a sonhar...

O trigo maduro. Ele, Mariana, os tios, a família da esposa, os amigos. Ao longe, as filhas brincando com os cachorros. Uma manhã radiante. Depois de trabalharem muito, descansavam debaixo dos eucaliptos e ficavam observando a farta colheita. Prenúncio de farinha, cheiro de pão no forno, sabor de casa. Ah, como eram bonitos aqueles mutirões de vizinhos para colher o grão que brotava da terra. Depois viriam as lavouras das outras famílias. E o rancho? Caiado, as tambeiras, o tordilho solto no piquete, o pomar das laranjeiras, o chiqueiro, o poço de água fresca, isso tudo parecia tão lindo lá no Rincão do Meio, onde levantara morada e agora descobria que tinha sido feliz.

Então, o frio da lâmina. Algo lhe rasgou a goela, o extermínio, o ódio, a barbárie. Seguiu dormindo. Sonho, imaginação ou realidade? Não compreendia. Experimentou uma leveza se espalhando pelo corpo magro. Já não era dor, não era fome, não era sede. Por ausência, um vazio. Como um pássaro, bateu as asas e foi subindo por entre as nuvens tristes. Do alto vislumbrou seu corpo espichado na grama perdida do Pampa. Era, enfim, a liberdade...

Paulo Mendes, em Campereada, Correio do Povo, outubro de 2018.

*O autor se refere à Revolução Federalista de fevereiro de 1893 a agosto de 1895.

A liberdade (2)


(Pinheiro Machado e tropa de pica-paus)

Eram quatro homens. Guerreiros, gaúchos, “pica-paus”, mas agora, olhando aquele corpo ensanguentado nem sabiam mais o que eram. Foi Latorra, um cuera lá do rincão dos Mulatos, que cortou a garganta do fugitivo. O maragato fora valente, isso foi, mas o haviam capturado. Eles também arrebentaram os cavalos, foi exaustivo, depois de ultrapassarem banhados, coxilhas, cortarem cercas, mas enfim, assunto acabado. O mais novo deles, Locrécio, ainda um rapazote, barba rala, quase albino, de melenas compridas, foi quem sugeriu que o enterrassem. “Não”, gritara Cabo Antunes, que abandonara o serviço militar por desacato e ameaça de prisão. Era uma espécie de chefes deles. Enquanto arrumava os arreios, Chico Osório concordou. Este, por sua vez, funcionava no grupo como um ajudante de ordens do chefe e com tudo concordava. “Essa gente morre e fica ao relento, pros corvo cumê...”, sentenciou.

Depois retornaram, ao trote batido, do meio para o fim da tarde. No início, chegaram a trocar algumas impressões, mas depois se calaram e, por fim, emudeceram por completo. Era apenas o barulho dos cascos dos cavalos nas várzeas, depois um longo corredor perto do Caverá, iam transpondo rios, várzeas, fazendas abandonadas. Estavam famintos, nem lembravam mais o que era uma refeição decente. Dias atrás haviam jantado uma galinha com arroz, com muita “pementa”, num bolicho improvisado numa carreta abandonada. Pagaram com algumas facas, um par de estribo e um freio. O Rio Grande estava devastado, diziam, e parecia ser verdade. Desde a Guerra dos Farrapos, os campos não se enchiam mais de gado. Cavalos, poucos, as guerras terminavam com tudo. E eles ali, no meio de outra. E os chefes, qual chefes, não se importavam com eles... Mas matavam porque senão morriam. Nem sabiam por que entraram, recrutados à moda da época, atenderam chamados e aprenderam a guerrear no calor dos entreveros. Haviam perdido tantos amigos, familiares, uns degolados, outros vilipendiados, humilhados antes de morrer. Então era preciso a vingança.

Como essa infâmia havia começado ninguém sabia, assim no precisar do fato. Era um diz-que-me-diz-que. Onde morava a verdade inteira? Não, nem adiantava campear. Locrécio agora não falava nada, mas a imagem do fugitivo degolado não lhe saía da cabeça, nem sabia se um dia aquilo ia sair. Que loucura, os olhos esbugalhados, o corte aberto de orelha a orelha e o sangue a jorrar. Devia ter família, filhos, sim, era possível. Ele não tinha filhos, mas havia dona Mirta, lá no Espinilho Grande, que lhe esperava. Era uma boa mãe. Havia dito: “Não vá, meu filho, para que morrer por algo que nem sabemos o que é?” Mas ele foi. Agora engolia horizontes, varava noites, cruzava dias, arriscando a vida, fugindo e peleando. Sim, tinha certeza que, mesmo advindo a paz, nunca mais seria livre, seria sempre prisioneiro. “Livre” mesmo, para sempre, só o fugitivo, aquele que prenderam e mataram.

*****

*A Revolução Federalista de 1893 a 1895 foi uma das maiores carnificinas que Rio Grande do Sul presenciou. Ao fim da guerra civil, havia 10 mil mortos. A prática da degola manchou nossa história. É preciso olhar para trás para que os grandes erros não se repitam.

(Paulo Mendes, em Campereada, Correio do Povo, outubro de 2018)





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