quinta-feira, 21 de junho de 2018

A banca do distinto



“Dolores Duran cantava no Little Club”, recorda Billy Blanco, ao descrever como nasceu “A banca do distinto”. E prossegue: “Ali tinha um cidadão que ia de segunda a quinta para assistir à Dolores. Ele gostava da voz de Dolores porque era poliglota, ela cantava em todas as línguas sem sotaque. Sexta e sábado não ia porque nós fazíamos bossa nova, era uma barulheira danada. Mas era um indivíduo esquisito, ele não se dirigia à Dolores, não falava com ela, não cumprimentava, sentava na mesa de lado, perto do microfone, chamava o garçom e dizia assim: ʽManda a negrinha cantar o ʽNuncaʼ. Ele não dizia neguinha, era negrinha com todos os erres. O garçom ia lá e dizia: ʽO homem mandou você cantarʼ. E ela cantava. Dali a pouco ele chamava o Alberico Campana, que naquele tempo era o maître, e dizia: ʽManda a negrinha cantar o ʽMenino grandeʼ. Alberico ia lá e dizia: ʽDolores, canta o ʽMenino grandeʼ que o cara está tomando uísque escocês, por favor faz a vontade deleʼ. E ela cantava. Quatro horas da manhã vinha um embrulho pra mesa dele, era um sanduíche de filé pra viagem, ele devia ser um solteirão ou similar. Ele pagava a conta, levantava e o garçom ia com o embrulho na mão e levava até o carro pra ele. A Dolores me contou isso e fiz a música numa noite. No dia seguinte fui na casa da Dolores às sete horas da manhã, porque eu sabia que era dia de feira na General Osório. Quando cheguei, a Dolores, de guarda-chuva e bolsa na mão:

− Que é que você quer?

− Vim aqui para mostrar um samba.

− Agora? Eu estou saindo para ir à feira.

− Não. Tem que escutar essa música.

Peguei o violão e ali, em pé, ela com a bolsa na mão:

− Canta.

Aí eu comecei: ʽNão fala com pobre.../O enfarte lhe pega e acaba essa bancaʼ. Ela disse para a empregada: ʽVai pra feira, está aqui o dinheiro, está aqui a bolsa, vai fazer a feira sozinhaʼ. E para mim:

− Vou cantar para aquele sacana hoje, eu já sei que vai ficar feio.

Aprendeu durante o dia e à noite cantou pra ele essa música que eu fiz:

A banca do distinto

Não fala com pobre,
Não dá mão a preto,
Não carrega embrulho.
Pra que tanta pose, doutor,
Pra que esse orgulho.
A bruxa, que é cega, esbarra na gente,
E a vida estanca.
O enfarte lhe pega, doutor,
E acaba essa banca.
A vaidade é assim,
Põe o bobo no alto
E retira a escada,
Mas fica por perto esperando sentada,
Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão.
Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco.
Afinal, todo mundo é igual quando o tombo termina,
Com terra em cima e na horizontal.

Era ʽA banca do distintoʼ. Foi feito por causa disso. Mas o cara nem se tocou.”

(Do livro: “Copacabana – A trajetória do samba-canção”,
de Zuza Homem de Mello)

P.S. Ouça, na internet, essa música na voz de Dolores Duran, ou Elis Regina, ou ainda na voz do compositor: Billy Blanco.



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