Malba Tahan
Certa vez - há muitos anos -
quando de volta de Bagdá, aonde fora vender uma grande partida de peles e
tapetes, encontrei num caravançará, perto de Damasco, velho árabe de Hedjaz que
me chamou de certo modo a atenção. Falava agitado com os mercadores e
peregrinos, gesticulando e praguejando sem cessar; fumava constantemente uma
mistura forte de fumo e haxixe e quando ouvia de um dos companheiros uma
censura qualquer, exclamava, apertando entre as mãos, o turbante esfarrapado:
- Mac
Allah! Ó muçulmanos! Eu já fui poderoso! Eu já tive o Destino nesta mão!
- É um
pobre diabo -
diziam. -
Não regula bem do miolo! Alá que o proteja!
Eu, porém - confesso -
sentia irresistível atração pelo desconhecido do turbante esfarrapado. Procurei
aproximar-me dele discretamente, falei-lhe várias vezes com brandura e ao fim
de algumas horas já lhe havia captado inteiramente a confiança.
- Os homens da caravana me
tomam por doido -
ele me disse uma noite quando cavaqueamos a sós. - Não querem acreditar que
já tive nas mãos o destino da humanidade inteira. Sim, senhor: o destino do
gênero humano!
Esbugalhei os olhos assombrado.
Aquela afirmação insistente de que havia sido senhor do Destino era
característica do seu pobre estado de demência.
O desconhecido, porém, que parecia
não perceber os meus sustos e desconfianças, continuou:
- Segundo ensina o Alcorão - o
livro de Alá -
a vida de todos nós está escrita - maktub! no grande “Livro do Destino”. Cada homem tem lá
a sua página com tudo o que de bom ou de mau lhe vai acontecer. Todos os fatos
que ocorrem na terra, desde o cair de uma folha seca, até à morte de um califa,
estão escritos -
estão fatalmente escritos - no Livro do Destino!
E sem
esperar que eu o interrogasse narrou-me o seguinte:
- Em viagem pelo deserto
sonhei, certa vez, com um velho feiticeiro que ia ser enforcado. Esse
feiticeiro, em sinal de gratidão, deu-me um talismã raríssimo que possuía. E
essa pedra maravilhosa permitia a entrada livre na famosa Gruta da Fatalidade,
onde se acha -
pela vontade de Alá -
o Livro do Destino. Viajei dois anos a fim de chegar à gruta encantada. Um
djinn − gênio bondoso que estava de sentinela à porta − deixou-me entrar,
avisando-me, porém, de que só poderia permanecer na gruta por espaço de poucos
minutos. Era minha intenção alterar o que estava escrito na página da minha
vida e fazer de mim um homem rico e feliz. Bastava acrescentar com a pena que
eu já levava. -
“Terá muito dinheiro!” Lembrei-me, porém, dos meus inimigos. Poderia, naquele
momento, fazer grande mal a todos eles. Movido pela ideia única do ódio e da
vingança, abri a página de Ali Ben-Homed, o mercador. Li o que ia acontecer a
esse meu rival! e acrescentei em baixo, sem hesitar, cheio de rancor: “Morrerá
pobre, sofrendo os maiores tormentos!” Na página de Zalfah-el-Abarj escrevi,
impiedoso, alterando-lhe a vida inteira: “Perderá todos os haveres; ficará cego
e morrerá de fome e sede no deserto!”
- E,
assim, sem piedade, arrasei, feri, retalhei a todos os meus desafetos!
- E na tua vida? -
indaguei, curioso. -
Que fizeste, ó muçulmano, na página em que estava escrita a tua própria
existência?
- Ah! meu amigo! − prosseguiu
o desconhecido, cheio de mágoa. − Nada fiz em meu favor. Preocupado em lazer o
mal aos outros, esqueci-me de fazer o bem a mim mesmo. Agi como um miserável.
Semeei largamente o infortúnio e a dor, e não colhi a menor parcela de
felicidade. Quando me lembrei de mim, quando pensei em tornar feliz a minha
vida, estava terminado o meu tempo. Sem que eu esperasse, surgiu-me pela frente
um efrite -
gênio feroz -
que me agarrou fortemente e, depois de arrancar-me das mãos o talismã, me
atirou fora da gruta. Caí entre as pedras e com a violência do choque perdi os
sentidos. Quando recuperei a razão, achei-me ferido e faminto, muito longe da
gruta, junto a pequeno oásis do deserto de Omã. Sem o talismã precioso, nunca
mais pude descobrir o tortuoso caminho da Gruta do Destino. E concluiu, entre
suspiros. numa atitude de profundo e irremediável desalento:
- Perdi
a única oportunidade que tive de ser rico e feliz!
Seria
verdadeira essa estranha aventura?
Até hoje ignoro. O certo é que o
triste caso do velho árabe de Hedjaz encerrava grande e precioso ensinamento.
Quantos homens há, no mundo, que preocupados em levar o mal a seus semelhantes,
se esquecem do bem que poderiam fazer a si próprios...
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