quinta-feira, 28 de junho de 2018

O livro do destino

Malba Tahan


Certa vez - há muitos anos - quando de volta de Bagdá, aonde fora vender uma grande partida de peles e tapetes, encontrei num caravançará, perto de Damasco, velho árabe de Hedjaz que me chamou de certo modo a atenção. Falava agitado com os mercadores e peregrinos, gesticulando e praguejando sem cessar; fumava constantemente uma mistura forte de fumo e haxixe e quando ouvia de um dos companheiros uma censura qualquer, exclamava, apertando entre as mãos, o turbante esfarrapado:

- Mac Allah! Ó muçulmanos! Eu já fui poderoso! Eu já tive o Destino nesta mão!

- É um pobre diabo - diziam. - Não regula bem do miolo! Alá que o proteja!

Eu, porém - confesso - sentia irresistível atração pelo desconhecido do turbante esfarrapado. Procurei aproximar-me dele discretamente, falei-lhe várias vezes com brandura e ao fim de algumas horas já lhe havia captado inteiramente a confiança.

- Os homens da caravana me tomam por doido - ele me disse uma noite quando cavaqueamos a sós. - Não querem acreditar que já tive nas mãos o destino da humanidade inteira. Sim, senhor: o destino do gênero humano!

Esbugalhei os olhos assombrado. Aquela afirmação insistente de que havia sido senhor do Destino era característica do seu pobre estado de demência.

O desconhecido, porém, que parecia não perceber os meus sustos e desconfianças, continuou:

- Segundo ensina o Alcorão - o livro de Alá - a vida de todos nós está escrita - maktub! no grande “Livro do Destino”. Cada homem tem lá a sua página com tudo o que de bom ou de mau lhe vai acontecer. Todos os fatos que ocorrem na terra, desde o cair de uma folha seca, até à morte de um califa, estão escritos - estão fatalmente escritos - no Livro do Destino!

E sem esperar que eu o interrogasse narrou-me o seguinte:

- Em viagem pelo deserto sonhei, certa vez, com um velho feiticeiro que ia ser enforcado. Esse feiticeiro, em sinal de gratidão, deu-me um talismã raríssimo que possuía. E essa pedra maravilhosa permitia a entrada livre na famosa Gruta da Fatalidade, onde se acha - pela vontade de Alá - o Livro do Destino. Viajei dois anos a fim de chegar à gruta encantada. Um djinn − gênio bondoso que estava de sentinela à porta − deixou-me entrar, avisando-me, porém, de que só poderia permanecer na gruta por espaço de poucos minutos. Era minha intenção alterar o que estava escrito na página da minha vida e fazer de mim um homem rico e feliz. Bastava acrescentar com a pena que eu já levava. - “Terá muito dinheiro!” Lembrei-me, porém, dos meus inimigos. Poderia, naquele momento, fazer grande mal a todos eles. Movido pela ideia única do ódio e da vingança, abri a página de Ali Ben-Homed, o mercador. Li o que ia acontecer a esse meu rival! e acrescentei em baixo, sem hesitar, cheio de rancor: “Morrerá pobre, sofrendo os maiores tormentos!” Na página de Zalfah-el-Abarj escrevi, impiedoso, alterando-lhe a vida inteira: “Perderá todos os haveres; ficará cego e morrerá de fome e sede no deserto!”

- E, assim, sem piedade, arrasei, feri, retalhei a todos os meus desafetos!

- E na tua vida? - indaguei, curioso. - Que fizeste, ó muçulmano, na página em que estava escrita a tua própria existência?

- Ah! meu amigo! − prosseguiu o desconhecido, cheio de mágoa. − Nada fiz em meu favor. Preocupado em lazer o mal aos outros, esqueci-me de fazer o bem a mim mesmo. Agi como um miserável. Semeei largamente o infortúnio e a dor, e não colhi a menor parcela de felicidade. Quando me lembrei de mim, quando pensei em tornar feliz a minha vida, estava terminado o meu tempo. Sem que eu esperasse, surgiu-me pela frente um efrite - gênio feroz - que me agarrou fortemente e, depois de arrancar-me das mãos o talismã, me atirou fora da gruta. Caí entre as pedras e com a violência do choque perdi os sentidos. Quando recuperei a razão, achei-me ferido e faminto, muito longe da gruta, junto a pequeno oásis do deserto de Omã. Sem o talismã precioso, nunca mais pude descobrir o tortuoso caminho da Gruta do Destino. E concluiu, entre suspiros. numa atitude de profundo e irremediável desalento:

- Perdi a única oportunidade que tive de ser rico e feliz!

Seria verdadeira essa estranha aventura?

Até hoje ignoro. O certo é que o triste caso do velho árabe de Hedjaz encerrava grande e precioso ensinamento. Quantos homens há, no mundo, que preocupados em levar o mal a seus semelhantes, se esquecem do bem que poderiam fazer a si próprios... 

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