domingo, 14 de março de 2021

Carta ao bolicheiro

 Paulo Mendes*

Buenas, bolicheiro, como vais? Parece que estou te vendo atrás do balcão de tábuas, de calça curta e chinela de dedo, camisa de flanela, alegre e satisfeito, pesando um quilo de feijão na balança bico de pato, cortando um naco de fumo em corda, rindo por ter acertado o peso “na mosca”, se despedindo dos clientes, correndo para buscar as vacas leiteiras e separar os terneiros num fim de tarde outonal. Ah, querido bolicheiro, eu sei que aprendeste a ler decorando rótulos de mercadorias nas prateleiras empoeiradas, que tinhas tantos sonhos, mas eu te acalmo, guri campeiro, todos eles serão realizados. Tu não sabes ainda, mas eu sei e te darei “spoiler”, como dizem hoje em dia, essa mania de abusar dos anglicismos para denominar coisas tão simples que em português têm tantos sinônimos. Eu só quero te dizer, bolicheiro, que tens muita vontade de subir no trem e partir para pagos distantes, mas sabes, querido amigo, quando fizeres isso, e sei que vais fazer, terás uma vontade imensa de voltar no tempo e experimentar tudo de novo atrás desse balcão sujo de banha, riscado à faca, que exalava um cheiro forte de querosene e cachaça. 

Saiba, bolicheiro, que vais sim te formar numa universidade federal, terás colegas que vão te ajudar, vais ler e escrever livros importantes, trabalhar em grandes veículos de comunicação, irás ter colunas em jornais, será homenageado por teu trabalho como jornalista e escritor, receberás prêmios, mas tudo que pensarás, nesses momentos, é estar de novo no Colégio Maria Rainha, brincar com teus colegas no recreio e ouvir os ensinamentos da professora Dilcéa. Tudo que vais desejar, menino campesino, é estar outra vez na humilde biblioteca de tua cidadezinha, pesquisando temas na Enciclopédia Barsa, e ler outras vez poemas do Juca Ruivo debaixo dos cinamomos, sentado num cepo tosco forrado com um pelego de ovelha Crioula. 

Tu conhecerás lindas cidades, metrópoles mundiais, cruzarás diversos mares, viajarás em aviões modernos, farás coberturas de eleições na Europa. Pensa bem, bolicheiro, tu, que vivias entregando ranchos de casa em casa, de carroça, ajudando tua mãe Mirica, conseguir realizar esse sonhos, concetizar essas ambições... E tanta gente achava que estavas louco. E mesmo assim, tu vais lembrar de como era gostoso degustar um picolé Chicabon sentado na praça da Vila Rica numa tarde de verão. Depois, bolicheiro, tu pegavas tua bicicleta Odomo e voltavas para casa. Sim, tu vais viajar por tantos oceanos, mas até nessa hora, bolicheiro, tu vais te lembrar das sangas e dos lajeados onde pescavas lambaris prateados. Vais ganhar dinheiro para viver bem, vais comer em restaurantes, assistirás a jogos em estádios famosos, mas terás uma saudade imensa do pão quentinho recém-saído do forno e do campinho de rosetas ao lado das taquareiras. Sim, tu vais ter tudo o que parecia ser um sonho, mas depois te darás conta que era mais emocionante aquele tempo em que pensavas não ter nada, mas, na verdade, já tinhas tudo. 

Ah, pequeno bolicheiro, quanta saudade eu sinto de ti. Tu és uma imagem plasmada na minha memória, uma recordação mais doce do que as pitangas ou as amoras. Tu és minha fotografia preferida da infância e, por isso, a guardo para sempre num escaninho secreto do coração. 

(*Em Campereadas, Correio do Povo, março de 2021)

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