quarta-feira, 31 de março de 2021

Portas fechadas

 Paulo Mendes*

Imagem da internet 

No meu tempo de bolicheiro, umas das coisas que mais me dava alegria era ver o semblante feliz dos tropeiros, changueiros, peões caseiros, domadores e alambradores que, depois de vários dias na labuta de sol a sol, encontravam no balcão um pouco de descanso e paz de espírito. Eu acordava cedo, varria o assoalho, limpava a balança e o balcão, lavava os copos, deixava tudo pronto para a chegada dos clientes. Sabia que muitos, ao passar, iam enxergar a porta aberta e entrar para comprar um pacote de bolacha, uma garrafa de aguardente, um litro de querosene, essas coisas que um trabalhador rural precisa para enfrentar uma semana e pico de serviço. Ah, meus amigos e minhas amigas, eu falo com propriedade porque convivi com eles durante muitos anos, senti suas mãos cheias de calos e sulcos, vi seus olhos encharcados de tantas desesperanças, de tantos sofrimentos. Gente que trabalhava apenas para sobreviver, que ganhava um dinheirinho minguado, injustiçados dos campos e dos corredores, que viviam em ranchinhos erguidos ao lado da estrada real. 

Para essa gente eu escrevi e seguirei escrevendo, dando voz a gargantas que nunca foram ouvidas. A literatura regionalista rio-grandense é eivada de feitos heróicos, personagens a cavalo em pingos lustrosos e de espadas em riste, mas pouco ou quase nada se refere aos desvalidos da Pampa aberta, os que morreram de fome em meio a tanta fartura. Os humildes que carregam uma enxada nas costas, os que caminham desesperançados sob o sol de janeiro em busca de um quilo disso e daquilo, que lutam por um prato de feijão. Gente que morreu de doenças simples nos fundões de campo por falta de remédio, que se foi cedo, deixou esse mundão de Deus porque muitas vezes encontrou as portas fechadas. Por isso, nosso bolicho abria suas portas ao clarear do dia e, muitas vezes, só fechava de madrugada. 

Quantas vezes nesta vida guapa as portas se fecharam para mim. Dei com a cara na madeira dura da incompreensão. Por outras, abriram-se janelas. Quantas ocasiões encontrei portas, janelas, tudo escancarado para que eu pudesse exercer minha atividade, minhas profissão. (...) 

Recordo de uma feita quando recém amanhecia, varria o chão da bodega, quando vi ao longe, na estrada real, seu Neto montado no lobuno e trazendo pelo cabresto mais dois cavalos de lida. Seu Neto era companheiro de meu pai em longas tropeadas, mas seu Mendes tinha um trabalho formal de funcionário público, nem sempre podia acompanhá-lo pelas estradas. Pelo jeito, pelo suor dos cavalos e cansaço do velho peão, haviam passado a madrugada troteando. Ele chegou, apeou, atou o lobuno nas tramas embaixo do cinamomo e, ao chegar à porta, tirou o chapéu e me disse assim, de supetão: “A pior coisa do mundo para um estradeiro é, depois de tanto bater casco, se deparar com a porta do bolicho fechada.” E, sentando, completou: “Felizmente, aqui sempre está aberta...” 

*(Do Correio do Povo, março de 2021) 

 

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