quarta-feira, 10 de março de 2021

Solo de clarineta

 

Uma das passagens mais emocionantes e emblemáticas da obra de Érico Veríssimo é o trecho de Solo de Clarineta* em que o escritor relembra sua experiência adolescente de ter que segurar uma lâmpada elétrica na mesa de operações da farmácia de seu pai enquanto o médico remendava um sujeito estropiado. Ele conta que superou o horror e a náusea pensando que iluminar a improvisada cirurgia não era nada comparada às dores do ferido. 

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“Lembro-me de que certa noite − eu teria uns quatorze anos, quando muito − encarregaram-me de segurar uma lâmpada elétrica à cabeceira da mesa de operações, enquanto um médico fazia os primeiros curativos num pobre-diabo que soldados da Polícia Municipal haviam “carneado”. (...) Apesar do horror e da náusea, continuei firme onde estava, talvez pensando assim: se esse caboclo pode aguentar tudo isso sem gemer, por que não hei de poder ficar segurando esta lâmpada para ajudar o doutor a costurar esses talhos e salvar essa vida? (...) Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.” 

Érico Veríssimo: Solo de Clarineta.

Tomo I. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. 

* Influências, infância, viagens, política, literatura: a vida de Érico Veríssimo em dois volumes de memórias que se leem como romance. Os volumes apresentam uma cronologia que cruza dados biográficos da família Veríssimo com a vida dos personagens das obras mais famosas do autor.

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