segunda-feira, 22 de março de 2021

Um juiz às direitas

 

Um ricaço muito avarento perdera um saquitel (1) com boa soma de dinheiro em ouro. Deitou logo anúncios nas folhas, prometendo cem táleres (2) de alvíssaras (3) a quem lho restituísse. Um camponês, que tinha encontrado o saco, foi contentíssimo en­tregá-lo ao nosso (4) homem. Este contou e tornou a contar o di­nheiro, e, depois de certificar-se de que nada faltava, disse com a maior serenidade para o camponês: 

“Deviam estar aqui dentro oitocentos táleres; não encontro senão setecentos; vejo que vossemecê teve o cuidado de tirar por suas próprias mãos os cem que eu tinha prometido: estamos pa­gos.” 

O campônio ficou pasmado (5), porque não tinha tocado no dinheiro, e semelhante recompensa de modo algum o podia satis­fazer. “Vamos ao Senhor juiz,” exclamou ele muito azedado com a história; “não, senhor, isso não fica assim; vamos ao Senhor juiz, e o que ele disser é o que se faz.” Foram. O juiz ouviu um e ou­tro com a maior atenção, pensou um pouco sobre o caso, e por fim saiu-se com esta sentença: 

“Vossemecê,” disse ele, voltando-se para o ricaço, “perdeu um saco com oitocentos táleres, e vossemecê,” continuou o magis­trado, dirigindo-se ao campônio, “achou um saco com setecentos táleres. Muito bem. Está provado que o saco que vossemecê achou, não é o mesmo que este senhor perdeu; e portanto tome vossemecê outra vez conta dele, e guarde-o até que apareça al­guém a reclamá-lo.” “Quanto ao meu amigo,” concluiu o juiz, voltando-se novamente para o avarento, com um risinho de escárnio, “não tem outro remédio senão ficar esperando com paciência que lhe apareçam os oitocentos táleres.” 

(Tradução) 

(1) Saquitel − uma das formas diminutivas de saco.

(2) Táler − antiga moeda alemã de prata.

(3) Alvíssaras − palavra de origem árabe − gratificação que se dá a quem achou o perdido ou a quem traz alguma boa novidade − emprega-se sempre no plural.

(4) Nosso homem − o homem de quem se falou.

(5) Ficou pasmado e não ficou pasmo, como se ouve e se lê frequen­temente. 

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

 


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