domingo, 21 de março de 2021

A tocadora de realejo

 Fialho de Almeida*

A primeira vez que a viram na cidade, era ela criança, tími­da, rósea, de um perfume alpestre da alta Saboia, e o seu olhar claro, de uma lucidez inocente, penetrava sem pejo e sem maldade todas as coisas que via. 

Tinha um vestidinho de chita azul, muito pobre, e as curvas do seio arfavam-lhe o corpete justo, com uma frescura saudável. 

Cabelos loiros rolavam-lhe pelas espáduas, em cintilas fulvas. 

A manga um pouco curta deixava nu o seu braço robusto e bem feito, em que se revelava o sangue das grandes raças do cam­po, esquecidas e conservadas na agrura das solidões bravias. 

Arrastava o seu carro de música, desmantelado, com o rea­lejo em cima, pelas grandes ruas em tumulto, sozinha, crente, pura nos seus quinze anos. 

Às vezes erguia timidamente os olhos para as janelas, onde borboleteavam crianças, e, suplicante, apontava o realejo, pergun­tando se queriam que ela moesse, como num moinho de café, os coros de Mozart. Alguns riam-se. Ela caminhava na sua misé­ria laboriosa. 

(Do livro “Seleta em Prosa e Verso”, de José Clemente Pinto)

*José Valentim Fialho de Almeida mais conhecido apenas como Fialho de Almeida (Vidigueira, Vila de Frades, Portugal, 7 de Maio de 1857 − Cuba, Alentejo, Portugal,  4 de Março de 1911), foi um jornalista, escritor e tradutor pós-romântico português. 



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